Licenciado em Matemática pela UFRGS.
Se
quisermos a perpendicularidade entre duas retas (com ângulo reto ou de 90°),
primeiro traçamos uma reta f a partir de dois pontos e, na etapa seguinte, com
um compasso nessa mesma reta f, desenhamos dois círculos que se interseccionam
(figura 1). Os dois pontos formados a partir dessa intersecção, nos ajudará a
obter a reta g perpendicular que queremos. Para alguns, pode parecer difícil
imaginar todas essas informações, ainda mais se estivermos falando de um aluno
que precisa entender porque nem sempre ele terá um quadrado, um triângulo e por
aí vai, apenas esboçando algo que remeta a uma dessas figuras. O fato é que
existem normas para podermos fazer esses desenhos e estas serão garantias de
que o objeto esteja bem representado. Por exemplo: para traçarmos uma reta,
basta dois pontos, então com uma régua sobre estes pontos, traçamos uma reta
com uma caneta; para construímos um triângulo equilátero, basta usarmos a
intersecção entre duas circunferências¹ (figura 2) e traçarmos os segmentos
dentro da intersecção que corresponderão ao raio que ambas circunferências
compartilham. Com a Álgebra também é necessário garantias para que um
determinado cálculo forneça um resultado lógico. Mas e se mudarmos a forma como
essa lógica é apresentada para fazermos com que os desenhos (também chamados de
construções) sejam entendidos pelos alunos partindo da ideia de que o seu corpo
pode ser associado a elementos que não existem na vida real (mesmo que ainda dependam
de regras e também do uso da régua e do compasso, por exemplo), poderíamos
pensar numa metodologia da imaginação?
Figura 1 - Retas perpendiculares construídas a partir da
intersecção de 2 círculos (ilustração feita pelo próprio autor com o app Geogebra).
Durante a graduação, enquanto fazia a disciplina
de Álgebra II, tive como tarefa construir uma reta tangenciando um círculo
partindo de um ponto externo a este objeto (figura 3). A apresentação foi feita
em formato de História em quadrinhos, onde um personagem, um ancião, usava
bastante pontos, retas, segmentos, ...
¹ Existem
outras demonstrações.
Figura 2- O lado do triângulo é igual ao raio do círculo,
portanto o triângulo é equilátero (ilustração feita pelo próprio autor com o
app Geogebra).
De modo geral, a apresentação agradou bastante e
os colegas não esperavam que alguém mostrasse algum exercício naquele formato,
mesmo assim, todos os futuros professores ali sabiam fazer as mesmas
construções e demonstrações geométricas (uns com mais facilidade que outros).
Para aquela turma, uma demonstração não é algo de outro mundo, embora nem
sempre fosse trivial. O grande desafio seria mostrar para alunos do ensino
fundamental ou médio, embora hoje não fossem conteúdos ensinados em sala de aula.
Independente disso, caso houvesse interesse em inserir esse tipo de exercício,
talvez fosse necessária (com possibilidade de resultados positivos) uma
adaptação para os níveis que fossemos dar aulas. Passada a apresentação e já em
sala de aula, foi perceptível que não dá para depender só de traços riscados
numa folha de papel, ou em formatos digitais numa tela celular ou computador,
já que, no meu caso, mostrando para alunos de ensino médio, faltou um pouco de
entendimento deles para saber do que se tratavam aqueles desenhos. Precisamos
de mais, mas o que seria necessário?
Figura 3 - Reta formada pelos pontos JB tangente ao
círculo com centro em A (ilustração feita pelo próprio autor com o app
Geogebra).
Não é adequado dizer somente que uma revista em
quadrinhos seja necessária, ainda faltam os elementos matemáticos que fariam
parte da revista. Por exemplo, se fosse para dar aulas de Geometria, para que
não utilizássemos retas e círculos, poderíamos iniciar a discussão usando o
corpo humano. Mas o que é possível fazer com o corpo? Primeiro, algumas
constatações, o nosso corpo tem simetria bilateral, isso quer dizer que os
membros da direita têm simetria com os da esquerda. Somado a esse fato, temos
que o corpo humano também é articulável, assim é possível – intuitivamente -
formar algumas figuras com os braços ou pernas, como se fossem segmentos, por
exemplo, apontando os braços e as mãos para frente, em linha reta, em direção
ao horizonte. O ponto de referência é o nosso eixo, o tronco (em perpendicular).
O contrário, se cruzarmos os braços, o paralelismo deixa de existir. Somente as
duas situações já é possível trabalhar as noções de retas paralelas e
perpendiculares, de tipos de ângulos e, na prática, o aluno veria o que seria
um ângulo menor que 90° (figura 4). Também é possível girarmos os braços em
relação ao ombro, o que possibilita desenhar um círculo. A partir daí, seria
possível nominarmos os ângulos principais (0°, 90°, 180°, 270° e 360°).
Figura 4 - A seta mais forte indica que o braço, esmaecido,
está abaixo dos 90° (ilustração feita pelo próprio autor).
Essas informações podem ser adaptas para uma HQ. Exemplo, o personagem Homem Aranha (Marvel) tem que lançar as teias para cima ou para baixo. Partindo da hipótese de que a teia desenhe um trajeto reto (foge das leis da Física²), é possível indicar ao aluno, através dos movimentos dos braços que ângulo está formando. Na pior das hipóteses, dá para estabelecer uma estimativa, já que é possível verificar as diferenças entre um ângulo e outro (figura 5). Assim como dá para montar um plano de ensino em que aos alunos são propostas atividades de construções de figuras com as teias do herói³ em folhas de papel ou mesmo no computador. A mesma analogia pode ser feita para o conteúdo de Funções e a dinâmica seria feita com base no uso do coeficiente angular de uma função afim, por exemplo. O personagem poderia ter lançado a teia em um andar específico, cuja informação seria o 4° andar, e o ângulo do braço dele, hipoteticamente, em relação ao solo é 45°, qual é a equação que se obtém daí?
² Oportunidade para um professor de Física dar continuidade,
falando de aspectos que não são discutidos, como considerar a massa, a
gravidade
Figura 5 - A seta na diagonal representa
a metade de 90°, ou 45° (ilustração feita pelo próprio autor).
Como o objetivo é criarmos uma revista em
quadrinhos e a usarmos em sala de aula, dentro de uma prática onde podemos,
inclusive, nos colocar no papel do herói, o passo seguinte é ver o contexto em
que seria usado o personagem. A Matemática e a Hq podem entrar na sala de aula
de diversas maneiras. Uma delas seria usando alguma figura geométrica, como o
círculo dos 9 pontos que na história seria representada pela teia do herói,
pegando a própria situação comentada antes, inserindo o vilão (Dr Octopus,
Duende Verde, ...) indo atrás do Homem Aranha (figura 6).
Figura 6 - Aplicando a circunferência dos
9 pontos a uma cena do Homem Aranha (ilustração feita pelo próprio autor).
Seguindo a mesma forma que foi usada com uma atividade
chamada Cama de Grafos, onde os alunos tiveram contato com conteúdo geralmente
ensinado na academia e, no entanto, tiveram a possibilidade de entender o que
eram Grafos a partir de uma Hq, de novelos de lã e de exercícios em grupos
(SILVA. 2019), numa imersão no conteúdo.
Além disso, cenas do próprio gibi pode ser
apresentado num formato de fanart (ilustração de um personagem feito por um
fã), ou produzidos pelos alunos. Qualquer que seja o caso, a contextualização,
o conteúdo matemático dependeria do professor ou do ilustrador ou de ambos, mas
dá para imaginar n-situações. Outro caso é o de usar personagens de cinema. Foi
o caso em que o filme “O grande dragão branco” (1988), estrelado pelo ator
belga Jean Claude Van Damme, motivou a relação feita entre os movimentos de
pernas com a Trigonometria. Se o movimento fosse de espacato (figura 7),
estaríamos falando do cosseno; se fosse um golpe usando os pés na vertical, o
seno. Mas o que me garante que uma aula usando esses critérios e essa ferramenta
poderão dar certo?
Figura 7 – Uma possível abordagem de
trigonometria (ilustração feita pelo próprio autor).
Por enquanto, só houve atividades bem dispersas,
mas o fato é que o braço é usado cotidianamente para diversas atividades, pegar
uma sacola, uma caneca; esticamos o braço para alcançar algum objeto para
alguém; para nos coçar e por aí vai. É algo natural, não é necessário dizer
“estique o braço e pegue o copo!”. A ideia é darmos novos significados para o
que estudamos e os tornar naturais, ou seja, não estamos falando mais apenas do
braço, mas de algo que se incorporou no nosso conhecimento, o braço passou a
ser mais que um membro do corpo humano, ele pode ser um segmento, dentro de uma
aula de Geometria, ou pode indicar o sinal de uma função e assim por diante. A
ideia é fazer o aluno “bater o olho” e saber o que e como deve executar uma
atividade. Por exemplo, num estudo com um grupo de exímios utilizadores de
ábacos (HATANO. 1977), os participantes foram solicitados que realizassem
cálculos bastante difíceis, sem o instrumento e com interferência sonora.
Percebeu-se que, aqueles que estavam fazendo o teste, mexiam com os dedos,
evidência de que não precisavam do ábaco, já que conseguiam “mexer” no objeto.
Quanto a uma ilustração, a ideia é a de que sejam feitos desenhos em que o
personagem, ou personagens, usem algo que seja análogo às nossas vivências, daí
a hipótese de ensino usando os sentidos, no caso específico, o tato, mas com as
ilustrações seriam como um gatilho para lembrarmos como cotidianamente usamos o
nosso corpo. Tal dinâmica seguiria a Teoria da Cognição Corporificada (Lakoff
& Núñes. 2000), linha que estuda justamente a forma como o nosso corpo se
relaciona com o mundo.
Independente do personagem que for escolhido,
importa a forma como será feita a comunicação entre o leitor/estudante e a HQ e
seus relacionados. Se foi escolhida a Geometria, então o professor/roteirista
ou o desenhista terão mais uma forma de ensinar o conteúdo, seguindo o que foi
dito aqui. Não é muito diferente de saber como desenhar uma figura geométrica,
basta unirmos os pontos e traçar o caminho para o roteiro didático. Dá para
dizer que o objetivo seja começar a tratar e estudar uma metodologia da
imaginação, já que o professor quer que o estudante relacione algo que ele já
possua com outra que o instiga a imaginar, a se colocar no lugar de um herói de
Quadrinhos e entender o conteúdo.
Referências:
Blum, Leandro Carlos. (2018). Quadrinhos e
Matemática: Algumas possíveis construções usando a imaginação. Trabalho de
Conclusão de Curso. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/189340
HATANO, Giyoo; MIYAKE, Yoshio; BINKS, Martin G. Performance of expert
abacus operators. Cognition, v.5, n.1, p.47-55, 1977.
LAKOFF, George; NÚÑES, Rafael E. Where mathematics comes from. New York:
Basic Books, 2000.
Silva, R. S. da, & Blum, L. C. (2019). Planejamento,
execução e reflexão a partir de uma abordagem inicial sobre Grafos na EJA: uma
experiência de transposição didática com a atividade “Cama de Grafos”. Revista
Thema, 16(1), 50-64. https://doi.org/10.15536/thema.16.2019.50-64.1137
Silva, R. S. da, Silva, M. B. O. da, Pereira, J.
C. T., & Blum, L. C. (2018). “Em busca do astronauta perdido”: um
experimento na formação inicial de professores de matemática envolvendo
Geometria Analítica & História em Quadrinhos. Revista Thema, 15(2),
485-497. https://doi.org/10.15536/thema.15.2018.485-497.925