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A imaginação como parte de uma metodologia de ensino.


 Por Leandro Carlos Blum

    Licenciado em Matemática pela UFRGS.

Se quisermos a perpendicularidade entre duas retas (com ângulo reto ou de 90°), primeiro traçamos uma reta f a partir de dois pontos e, na etapa seguinte, com um compasso nessa mesma reta f, desenhamos dois círculos que se interseccionam (figura 1). Os dois pontos formados a partir dessa intersecção, nos ajudará a obter a reta g perpendicular que queremos. Para alguns, pode parecer difícil imaginar todas essas informações, ainda mais se estivermos falando de um aluno que precisa entender porque nem sempre ele terá um quadrado, um triângulo e por aí vai, apenas esboçando algo que remeta a uma dessas figuras. O fato é que existem normas para podermos fazer esses desenhos e estas serão garantias de que o objeto esteja bem representado. Por exemplo: para traçarmos uma reta, basta dois pontos, então com uma régua sobre estes pontos, traçamos uma reta com uma caneta; para construímos um triângulo equilátero, basta usarmos a intersecção entre duas circunferências¹ (figura 2) e traçarmos os segmentos dentro da intersecção que corresponderão ao raio que ambas circunferências compartilham. Com a Álgebra também é necessário garantias para que um determinado cálculo forneça um resultado lógico. Mas e se mudarmos a forma como essa lógica é apresentada para fazermos com que os desenhos (também chamados de construções) sejam entendidos pelos alunos partindo da ideia de que o seu corpo pode ser associado a elementos que não existem na vida real (mesmo que ainda dependam de regras e também do uso da régua e do compasso, por exemplo), poderíamos pensar numa metodologia da imaginação?

 

Figura 1 - Retas perpendiculares construídas a partir da intersecção de 2 círculos (ilustração feita pelo próprio autor com o app Geogebra).

 

Durante a graduação, enquanto fazia a disciplina de Álgebra II, tive como tarefa construir uma reta tangenciando um círculo partindo de um ponto externo a este objeto (figura 3). A apresentação foi feita em formato de História em quadrinhos, onde um personagem, um ancião, usava bastante pontos, retas, segmentos, ...

 

¹ Existem outras demonstrações.

 

Figura 2- O lado do triângulo é igual ao raio do círculo, portanto o triângulo é equilátero (ilustração feita pelo próprio autor com o app Geogebra).

 

De modo geral, a apresentação agradou bastante e os colegas não esperavam que alguém mostrasse algum exercício naquele formato, mesmo assim, todos os futuros professores ali sabiam fazer as mesmas construções e demonstrações geométricas (uns com mais facilidade que outros). Para aquela turma, uma demonstração não é algo de outro mundo, embora nem sempre fosse trivial. O grande desafio seria mostrar para alunos do ensino fundamental ou médio, embora hoje não fossem conteúdos ensinados em sala de aula. Independente disso, caso houvesse interesse em inserir esse tipo de exercício, talvez fosse necessária (com possibilidade de resultados positivos) uma adaptação para os níveis que fossemos dar aulas. Passada a apresentação e já em sala de aula, foi perceptível que não dá para depender só de traços riscados numa folha de papel, ou em formatos digitais numa tela celular ou computador, já que, no meu caso, mostrando para alunos de ensino médio, faltou um pouco de entendimento deles para saber do que se tratavam aqueles desenhos. Precisamos de mais, mas o que seria necessário?

 

Figura 3 - Reta formada pelos pontos JB tangente ao círculo com centro em A (ilustração feita pelo próprio autor com o app Geogebra).

 

Não é adequado dizer somente que uma revista em quadrinhos seja necessária, ainda faltam os elementos matemáticos que fariam parte da revista. Por exemplo, se fosse para dar aulas de Geometria, para que não utilizássemos retas e círculos, poderíamos iniciar a discussão usando o corpo humano. Mas o que é possível fazer com o corpo? Primeiro, algumas constatações, o nosso corpo tem simetria bilateral, isso quer dizer que os membros da direita têm simetria com os da esquerda. Somado a esse fato, temos que o corpo humano também é articulável, assim é possível – intuitivamente - formar algumas figuras com os braços ou pernas, como se fossem segmentos, por exemplo, apontando os braços e as mãos para frente, em linha reta, em direção ao horizonte. O ponto de referência é o nosso eixo, o tronco (em perpendicular). O contrário, se cruzarmos os braços, o paralelismo deixa de existir. Somente as duas situações já é possível trabalhar as noções de retas paralelas e perpendiculares, de tipos de ângulos e, na prática, o aluno veria o que seria um ângulo menor que 90° (figura 4). Também é possível girarmos os braços em relação ao ombro, o que possibilita desenhar um círculo. A partir daí, seria possível nominarmos os ângulos principais (0°, 90°, 180°, 270° e 360°).

 

Figura 4 - A seta mais forte indica que o braço, esmaecido, está abaixo dos 90° (ilustração feita pelo próprio autor).

 

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Essas informações podem ser adaptas para uma HQ. Exemplo, o personagem Homem Aranha (Marvel) tem que lançar as teias para cima ou para baixo. Partindo da hipótese de que a teia desenhe um trajeto reto (foge das leis da Física²), é possível indicar ao aluno, através dos movimentos dos braços que ângulo está formando. Na pior das hipóteses, dá para estabelecer uma estimativa, já que é possível verificar as diferenças entre um ângulo e outro (figura 5). Assim como dá para montar um plano de ensino em que aos alunos são propostas atividades de construções de figuras com as teias do herói³ em folhas de papel ou mesmo no computador. A mesma analogia pode ser feita para o conteúdo de Funções e a dinâmica seria feita com base no uso do coeficiente angular de uma função afim, por exemplo. O personagem poderia ter lançado a teia em um andar específico, cuja informação seria o 4° andar, e o ângulo do braço dele, hipoteticamente, em relação ao solo é 45°, qual é a equação que se obtém daí?


² Oportunidade para um professor de Física dar continuidade, falando de aspectos que não são discutidos, como considerar a massa, a gravidade

 

Figura 5 - A seta na diagonal representa a metade de 90°, ou 45° (ilustração feita pelo próprio autor).

Como o objetivo é criarmos uma revista em quadrinhos e a usarmos em sala de aula, dentro de uma prática onde podemos, inclusive, nos colocar no papel do herói, o passo seguinte é ver o contexto em que seria usado o personagem. A Matemática e a Hq podem entrar na sala de aula de diversas maneiras. Uma delas seria usando alguma figura geométrica, como o círculo dos 9 pontos que na história seria representada pela teia do herói, pegando a própria situação comentada antes, inserindo o vilão (Dr Octopus, Duende Verde, ...) indo atrás do Homem Aranha (figura 6).

 

Figura 6 - Aplicando a circunferência dos 9 pontos a uma cena do Homem Aranha (ilustração feita pelo próprio autor).

Seguindo a mesma forma que foi usada com uma atividade chamada Cama de Grafos, onde os alunos tiveram contato com conteúdo geralmente ensinado na academia e, no entanto, tiveram a possibilidade de entender o que eram Grafos a partir de uma Hq, de novelos de lã e de exercícios em grupos (SILVA. 2019), numa imersão no conteúdo.

Além disso, cenas do próprio gibi pode ser apresentado num formato de fanart (ilustração de um personagem feito por um fã), ou produzidos pelos alunos. Qualquer que seja o caso, a contextualização, o conteúdo matemático dependeria do professor ou do ilustrador ou de ambos, mas dá para imaginar n-situações. Outro caso é o de usar personagens de cinema. Foi o caso em que o filme “O grande dragão branco” (1988), estrelado pelo ator belga Jean Claude Van Damme, motivou a relação feita entre os movimentos de pernas com a Trigonometria. Se o movimento fosse de espacato (figura 7), estaríamos falando do cosseno; se fosse um golpe usando os pés na vertical, o seno. Mas o que me garante que uma aula usando esses critérios e essa ferramenta poderão dar certo?

 


Figura 7 – Uma possível abordagem de trigonometria (ilustração feita pelo próprio autor).

 

Por enquanto, só houve atividades bem dispersas, mas o fato é que o braço é usado cotidianamente para diversas atividades, pegar uma sacola, uma caneca; esticamos o braço para alcançar algum objeto para alguém; para nos coçar e por aí vai. É algo natural, não é necessário dizer “estique o braço e pegue o copo!”. A ideia é darmos novos significados para o que estudamos e os tornar naturais, ou seja, não estamos falando mais apenas do braço, mas de algo que se incorporou no nosso conhecimento, o braço passou a ser mais que um membro do corpo humano, ele pode ser um segmento, dentro de uma aula de Geometria, ou pode indicar o sinal de uma função e assim por diante. A ideia é fazer o aluno “bater o olho” e saber o que e como deve executar uma atividade. Por exemplo, num estudo com um grupo de exímios utilizadores de ábacos (HATANO. 1977), os participantes foram solicitados que realizassem cálculos bastante difíceis, sem o instrumento e com interferência sonora. Percebeu-se que, aqueles que estavam fazendo o teste, mexiam com os dedos, evidência de que não precisavam do ábaco, já que conseguiam “mexer” no objeto. Quanto a uma ilustração, a ideia é a de que sejam feitos desenhos em que o personagem, ou personagens, usem algo que seja análogo às nossas vivências, daí a hipótese de ensino usando os sentidos, no caso específico, o tato, mas com as ilustrações seriam como um gatilho para lembrarmos como cotidianamente usamos o nosso corpo. Tal dinâmica seguiria a Teoria da Cognição Corporificada (Lakoff & Núñes. 2000), linha que estuda justamente a forma como o nosso corpo se relaciona com o mundo.

Independente do personagem que for escolhido, importa a forma como será feita a comunicação entre o leitor/estudante e a HQ e seus relacionados. Se foi escolhida a Geometria, então o professor/roteirista ou o desenhista terão mais uma forma de ensinar o conteúdo, seguindo o que foi dito aqui. Não é muito diferente de saber como desenhar uma figura geométrica, basta unirmos os pontos e traçar o caminho para o roteiro didático. Dá para dizer que o objetivo seja começar a tratar e estudar uma metodologia da imaginação, já que o professor quer que o estudante relacione algo que ele já possua com outra que o instiga a imaginar, a se colocar no lugar de um herói de Quadrinhos e entender o conteúdo.

 


 

Referências:

Blum, Leandro Carlos. (2018). Quadrinhos e Matemática: Algumas possíveis construções usando a imaginação. Trabalho de Conclusão de Curso. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/189340

HATANO, Giyoo; MIYAKE, Yoshio; BINKS, Martin G. Performance of expert abacus operators. Cognition, v.5, n.1, p.47-55, 1977.

LAKOFF, George; NÚÑES, Rafael E. Where mathematics comes from. New York: Basic Books, 2000.

Silva, R. S. da, & Blum, L. C. (2019). Planejamento, execução e reflexão a partir de uma abordagem inicial sobre Grafos na EJA: uma experiência de transposição didática com a atividade “Cama de Grafos”. Revista Thema, 16(1), 50-64. https://doi.org/10.15536/thema.16.2019.50-64.1137

Silva, R. S. da, Silva, M. B. O. da, Pereira, J. C. T., & Blum, L. C. (2018). “Em busca do astronauta perdido”: um experimento na formação inicial de professores de matemática envolvendo Geometria Analítica & História em Quadrinhos. Revista Thema, 15(2), 485-497. https://doi.org/10.15536/thema.15.2018.485-497.925

 













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